31.8.05

REGIÃO POBRE, PODER FRÁGIL


O Governo Regional anunciou – com a pompa habitual – a realização dum Conselho de Governo para os Assuntos Económicos, no qual participarão a Câmara de Comércio, a Federação Agrícola e a estrutura representativa dos industriais de construção civil (AICOPA). Li a notícia e estranhei o seu conteúdo, não querendo acreditar no seu conteúdo.

O Conselho de Governo é um órgão de natureza colegial, presidido pelo Presidente do Governo e composto pelo Vice-Presidente e pelos Secretários Regionais. O Conselho de Governo é a reunião de todos os Secretários Regionais e Vice-Presidentes, se os houver, com competência para desempenhar todas as funções políticas e administrativas previstas na Constituição, no Estatuto Político-Administrativo ou na lei. O Estatuto Político-Administrativo admite a realização de reuniões restritas do Governo Regional em razão da matéria, seja ela de natureza económica, social ou outra.

Um Conselho de Governo para os Assuntos Económicos, destinado a tomar decisões ou definir orientações de natureza económico-financeira apenas pode ser composto por membros do Governo, nos termos do disposto no artigo 63º e seguintes do nosso Estatuto Político-Administrativo, e nunca por personalidades – por mais ilustres que sejam – que não desempenhem funções Governativas ao nível de Secretário Regional, Vice-Presidente ou Presidente do Governo.

Intencionalmente o Governo Regional ignora este facto, divulgando a participação de agentes económicos num Conselho de Governo como "a primeira iniciativa do género promovida por Carlos César", como se pode ler no portal oficial do Governo Regional, em
www.azores.gov.pt, sob o título "Presidente do Governo propõe reflexão “desinibida, mas rigorosa” sobre economia dos Açores".

Não se trata duma má interpretação dos jornais, mas sim duma notícia cuja fonte é o oficial portal do Governo Regional dos Açores. De modo irreflectido, o Governo Regional comete um acto ilegal, confundindo a autoridade do Estado, com o poder das corporações.

Já não é primeira vez que os governos do PS acentuam esta confusão: quem já não se lembra, quando o Governo Regional tentou celebrar um acordo com a mesma AICOPA para que esta se endividasse junto da banca para pagar as dívidas da Região aos empreiteiros de obras públicas?

Agora não há um acordo com uma instituição de crédito, mas sim um acto político violador da legalidade, que confunde os parceiros sociais com governantes.

Se o Presidente do Governo quer auscultar os agentes económicos – e concordo que o faça – porque não reúne o Conselho Regional de Concertação Estratégica? Ou porque não reúne, simplesmente, com os parceiros sociais que entende dever ouvir?

Sob a pretensa capa duma novidade em época de campanha eleitoral, o Governo Regional desvaloriza, uma vez mais, o Conselho Regional de Concertação Estratégica, reconhecendo implicitamente que a sua composição reflecte, de modo excessivo, o peso dos vários departamentos governamentais, em prejuízo da sociedade civil e do tecido económico e empresarial.

Haverá sempre quem, perante isto, encolha os ombros e diga que "não tem importância". Porém, a acção política e a conduta dos governantes é pautada por regras cujo cumprimento estrito é sempre exigível e devido, em democracia. Não é um pormenor burocrático ou administrativo que está em causa. Trata-se da dignidade da Região, do funcionamento dum órgão político e administrativo e, fundamentalmente, do respeito pela letra do Estatuto.

Aquilo que poderia ser normal numa república das bananas, não é tolerável numa Região democrática e num Estado de direito.
(Publicado na edição de hoje do Açoriano Oriental)

11.8.05

TRINTA ANOS DE TELEVISÃO NOS AÇORES

Ao longo de trinta anos de vida, a RTP-Açores contribuiu, de modo indiscutível, para ajudar a construir o conceito político de região. Esse papel resultou menos duma opção do que da imposição das circunstâncias. A afirmação duma pequena televisão, numa região insular, aquipelágica e com um poder político regional (gerador, desde logo, dum fluxo informativo próprio) assentou no pressuposto correcto de valorizar a cultura e a identidade destas ilhas. Ao mostrar os Açores aos Açorianos e ao mundo, a RTP-Açores alargou os horizontes insulares para além da fronteira natural cada ilha e permitiu um olhar diferente sobre a Região, a partir do exterior.

Se a vocação de televisão regional surge com naturalidade como essência da RTP/A, o modelo específico de televisão regional nunca foi claro na sua linha de programação – quer na produção quer na informação – para além daquilo que é óbvio.

Querendo ser uma televisão regional, a RTP/A sempre hesitou quanto a uma opção definitiva, comportando-se muitas vezes como uma televisão generalista, diluindo o seu papel face aos canais nacionais da casa-mãe.

Em trinta anos o mundo mudou muito – é um lugar comum dizê-lo – e a televisão mudou com ele. Mudaram também os espectadores e a sua percepção sobre os conteúdos televisivos. A RTP/A também mudou, obviamente, mas em muitos aspectos, deixou-se ficar para trás, ignorando a espectacular mudança que atravessou a televisão. Ainda hoje se faz televisão nos Açores, quase como se fazia há trinta anos, sendo notório o "gap" ao nível da informação.

A RTP/A – apesar do esforço de muitos e bons profissionais que ao longo de três décadas assinaram grandes momentos de televisão – continua longe dum patamar de elevada qualidade que deve caracterizar um produto televisivo. Olimpicamente, a RTP/A continua a ignorar que as audiências têm gosto e, mais do que isso, têm termos de comparação à distância dum simples "clic" no comando.

A modernização da televisão – dos conteúdos, da linguagem, da diversificação da informação, da produção e da segmentação da oferta - não pode passar apenas pela ambição da construção de novas instalações, muito embora elas sejam indispensáveis, já que as actuais não respondem, nem de perto nem de longe, às mais elementares exigências de produção televisiva. Aqui, como noutro lado qualquer, as instalações são meramente instrumentais. Do mesmo modo que o "hábito não faz o monge", também os estúdios não fazem a televisão!

O sucesso duma televisão de pequena dimensão e de vocação regional depende mais da capacidade de inovação e de conceptualização de novos conteúdos, com um elevado padrão de qualidade, do que da generosidade dos meios financeiros, sempre modestos no caso da RTP/A. Por isso mesmo, como espectador, não me deixo seduzir pelo crescente número de horas de emissão televisiva da RTP/A, bem sabendo que elas parcialmente reflectem inúmeras repetições de programas, muitas vezes emitidos no mesmo dia. Nesta matéria, prefiro menos horas de emissão, com muito melhor qualidade.

Em data de aniversário, a RTP/A enfrenta dois desafios essenciais: produzir com qualidade, para novas gerações de espectadores e cumprir de outro modo a dimensão de serviço público regional que o seu estatuto de televisão pública comporta, tanto no plano regional, como no âmbito das produções para o exterior.

Trinta anos depois, os espectadores merecem uma televisão mais sofisticada e mais ambiciosa.

3.8.05

CABO VERDE – CRÓNICA DO ATLÂNTICO (II)

A ilha do Sal parece um deserto: a secura estende-se a perder de vista, apenas pontuada – aqui e ali – por pequenos arbustos, dum verde desmaiado, cuja única função deve ser lembrar a maldade dos Deus. Os versos de Florbela Espanca, a propósito do Alentejo, poderiam ter sido escritos a pensar no Sal: "a planície é um brasido e, torturadas/as árvores sangrentas, revoltadas/gritam a Deus a benção duma fonte". Apenas acrescentaria que na ilha cabo-verdiana não são apenas as árvores que pedem água: tudo pede um pouco mais de água. Até o turista mais distraído, no conforto do seu "resort" é instintivamente levado a poupar água, nos gestos rotineiros de tomar duche ou fazer a barba. O abastecimento de água às populações é assegurado pela empresa de capitais públicos Electra e, a partir do início de Julho, através do projecto da Cabocan – Água de Ponta Preta, que, para além de garantir o fornecimento de água aos empreendimentos turísticos também debita para a rede de abastecimento público, minorando o risco de cortes frequentes no fornecimento de água. Numa região onde não chove há mais de cinco anos, a água tem um valor acrescido. A água das torneiras é água do mar, sujeita a um processo de dessalinização, dando um gosto diferente aos alimentos. O café – de boa qualidade, seja ele Delta ou "café crioulo", como é designado localmente – tem um travo bem mais amargo, que o andar dos dias não consegue apagar…. A água engarrafada – importada de Portugal – é um luxo a que os residentes não se podem permitir. Com salários médios, no ramo da hotelaria ou restauração, na ordem dos 150 euros mensais, pagar 0,75 cêntimos por uma garrafa de litro e meio de água é demasiado… Por isso mesmo, é frequente ver no Calçadão – zona de circulação pedestre, separando a linha dos hotéis da praia – quem peça aos turistas que regressam da praia as garrafas de água, logo bebida sofregamente. Responsável por cerca de 80% das dormidas de Cabo Verde, a ilha do Sal tem vindo a afirmar-se como um destino turístico autónomo, dentro do arquipélago. Contudo, a construção de novos hotéis (sete para os próximos tempos, um dos quais do grupo espanhol Riu, com 2000 camas) não consegue esbater a diferença brutal entre a vida dentro dos "resort’s" turísticos e a das populações circundantes: aqueles são ilhas, dentro das próprias ilhas, com recursos impensáveis para o dia-a-dia dos cabo-verdianos. Não se pense que o termo de comparação assenta em coisas sofisticadas; bem pelo contrário, trata-se de coisas tão simples como um posto médico (existente em cada um dos "resort’s", mas inexistente na Vila de Santa Maria, confinante com o Hotel Morabeza – a mais antiga unidade hoteleira da ilha) ou como aspirinas ou "compensan" igualmente inexistentes no mercado local. Apesar de Cabo Verde ser um dos PALOP’S que melhor tem aproveitado os recursos provenientes da ajuda internacional, a verdade é que 30% da sua população vive abaixo do limiar de pobreza e que o PIB per capita é de apenas € 1.400,00 anuais. A realidade económica do país entra pelos olhos dentro de quem circule pelo Sal e impõe-se, mesmo nos locais assinalados em todos os roteiros turísticos, como sendo de visita obrigatória: Buracona, Salinas, Ponta Preta…
O desenvolvimento tarda, para arrancar as pessoas e os lugares duma pobreza atávica, que a alegria dos funanás não chega para esconder.

1.8.05

CABO VERDE – CRÓNICA DO ATLÂNTICO (I)


A primeira sensação que se tem confirma a afirmação clássica da literatura de viagens: o cheiro ataca os sentidos, logo à saída do avião. Uma vaga de calor seco, penetrante envolve-nos logo à saída do avião. Na escuridão da noite, apenas pontuada pela luminosidade do avião, os faróis dos carros na pista e uma fraca luz da aerogare, o primeiro contacto com a ilha do Sal é olfactiva: o cheiro com todos os cheiros de África toma conta de nós.

Como sucede a qualquer estrangeiro, a primeira etapa é o preenchimento dos impressos necessários à entrada no país, seguindo-se uma tortuosa espera para as formalidades legais: verificação do visto e passaporte. Tudo a um ritmo tipicamente cabo-verdiano, que leva os locais a afirmar, com um sorriso nos lábios: "Cabo Verde: no stress". Tal como na fórmula que Fernando Pessoa inventou para publicitar a Coca-cola, "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Com o andar dos dias, acabamos por nos habituar a uma indolência típica destes ilhéus, que torna o atendimento dum simples pedido de café ao balcão dum honesto bar, leve sempre mais tempo do que possamos imaginar…

Após cerca de uma hora para o cumprimento das formalidades legais, debaixo dum calor entorpecedor, já que o ar condicionado – apesar de nova, numa aerogare também nova – não funciona, lá nos aventurámos para uma nova espera: a das bagagens. Mesmo por cima do tapete rolante – o único da aerogare – onde as minhas malas acabarão por aparecer, depois de mais de uma hora, há um cartaz que me faz sorrir: naquele calor, um anúncio da Sagres – "o calor dum povo, a frescura duma cerveja" – quase que me faz desejar uma cerveja bem gelada às três da manhã.

Porém, as surpresas das primeiras no Sal não se ficaram por aqui. Tinha contratado um serviço de "transfer" do Aeroporto para o hotel, pensando que poderia viajar num veículo confortável, com ar condicionado. Enganei-me redondamente: a viagem, de cerca de quinze quilómetros, foi efectuada num velho autocarro, com uns trinta anos e, obviamente, sem ar condicionado. Viajei à moda antiga: de janelas completamente abertas, dum lado e do outro, com as malas confortavelmente instaladas no banco imediatamente à frente daquele em que me sentei.

O meu coração benfiquista deu um salto, quando reparei que – mesmo em frente à saída do Aeroporto Amílcar Cabral – nome do fundador do PAIGC e um dos políticos de referência de Cabo Verde – há um enorme cartaz que diz (cito de memória): "os benfiquistas cabo-verdianos saúdam o presidente campeão". A frase enquadra uma fotografia de Luís Filipe Vieira e o símbolo do Benfica, com a inevitável Sagres, patrocinadora da equipa encarnada.

A paixão pelo futebol português é acentuada no arquipélago: os cabo-verdianos seguem as peripécias da Primeira Liga com toda a atenção e dividem as suas opções clubísticas entre os três grandes do futebol português. Sabendo-me português, não há empregado de café ou de restaurante que não queira discutir as últimas do futebol e, se a opção pelo Benfica coincide com a minha, então é certo que a conversa se prolongará um pouco mais, alimentada daquela certeza de que o “glorioso” voltará a ser campeão esta época.

Paixões futebolísticas aparte, há uma afabilidade natural dos cabo-verdianos, que se impõe no contacto social a todos os níveis, seja onde for, que nos leva a quase desculpar a tal indolência típica dês paragens.

Nestas paragens do Atlântico, sinto que, de algum modo, também estou em casa.